Miscelânea:

1) O psicanalista vai ao cinema (e ao teatro); 2) O psicanalista lê (um tanto apressado) o jornal; 3) Correspondência

Dr. Sérgio Telles

A) O PSICANALISTA VAI AO CINEMA (E AO TEATRO)

1) "MAGNOLIA", que a leitora Nilze Pacetta de Arruda Botelho (vide e-mail em sessão CORRESPONDÊNCIA) pediu-me para comentar, ganhou o "Urso de Prata" de Berlin como melhor filme do ano e Tom Cruise foi indicado como melhor ator no Oscar. É o terceiro filme do jovem diretor (30 anos) Paul Thomas Anderson, que antes fez "Hard Eight" e o polêmico "Boogie Nights", que enfoca a produção e o mercado dos filmes pornográficos.

MAGNÓLIA é um filme muito irregular. Tem um roteiro inteligente, adulto, afastando-se do rotineiro esquema de histórias inconsistentes e água-com-açúcar comum nas produções americanas. Não, aqui temos seres humanos carregados de conflitos, culpas, sentimentos complexos e ambivalentes, exatamentes como na vida real e na produção dos grandes escritores da melhor literatura.

Assim, seguimos o drama do grande produtor de TV, que está à morte – o que enche de culpa sua jovem e interesseira mulher – e que procura o filho, atualmente um guru de auto-ajuda que prega o machismo mais virulento. Quem o ajuda nesta procura é um bondoso enfermeiro. Um dos programas financiados por ele apresenta crianças prodígios respondendo questões gerais e já tem mais de 30 anos no ar. Tal programa é comandado pelo mesmo apresentador, que está também morrendo de câncer e tenta fazer as pazes com sua única filha, uma toxicômana. A tremenda pressão em cima das crianças prodígios, a exploração da qual são vítimas por parte de pais ambiciosos é claramente mostrada, ao que se junta o drama da primeira criança que participou do programa, atualmente um adulto perdido e frustrado. Em torno de tudo isso, vemos um policial, que tenta dar um mínimo de ordem num mundo onde o caos impera.

Uma linha que une todas as histórias é o abuso – por abandono, ataque sexual, exploração narcísica – que os pais infligem a seus filhos. De uma maneira mais ampla, a meditação sobre a vida frente a morte, poderíamos dizer assim, é o tema central de MAGNÓLIA.

Mas aí começam suas dificuldades. Sua estrutura narrativa se apoia em dois grandes filmes recentes, o SHORT CUTS, de Altman e o HAPPINESS, de Todd Solondz, nos quais vemos o drama de vários personagens que estão ligados de forma indireta.

O problema é que Anderson não consegue amarrar muito bem tais histórias e tenta vários artifícios para tanto, a meu ver, sem muito sucesso.

O primeiro deles é apelar par um recurso que poderíamos chamar de "operístico", apoiando-se fortemente em canções de Aimee Mann. Vemos isso nos momentos iniciais, quando a música se superpõe e persiste durante o desenrolar da ação, em tom alto, chegando até mesmo a incomodar o espectador, especialmente a nós brasileiros, desde que não foi legendada a letra da música, o que poderia deixar mais clara a intenção do diretor. A cantora fala sobre a solidão das pessoas, repetindo que "one is the loneliest number" ("um é o número mais solitário"). A relevância do recurso operístico fica ainda mais visível nos instantes finais, quando vemos todos os personagens, nas mais variadas situações pelas quais estão passando, cantando o bordão de outra canção, que diz: "it’s not going to stop ‘til you wise up", ou seja: "não vai parar a não ser que você fique mais sábio".

O outro artifício que o diretor usou foi a polêmica chuva de rãs. É um exemplo irretocável do recurso "deus ex-machina", tradicionalmente usado pelos autores quando não sabem mais o que fazer para dar um desfecho adequado a suas criações.

Pode-se dizer que o diretor não teme o ridículo, pois dele sua versão do "deus ex-machina" se aproxima perigosamente.

Além do mais, ao apelar para este recurso - que tem um ar de "realismo fantástico", de surrealismo – Anderson desfigura sua obra, que até então se apoiava no léxico do realismo psicológico.

Entretanto, quando lembramos o impactante início do filme, com as surpreendentes imagens de grandes coincidências que apontam para a intervenção de um poder maior frente aos projetos humanos, a aparição das rãs não deixa de dar um fecho àquilo que tinha ficado meio sem sentido até então. Ela pareceria uma vaga menção às dez pragas do Egito, quando Deus castigou as terras do Faraó, fazendo uma extraordinária aparição de sapos que a tudo destruiu.

Assim, o "deus ex-machina"de Anderson é não apenas o corriqueiro recurso usado por autores que não sabem como terminar seus enredos, mas passa a ser estruturalmente a intervenção da mão divina nos destinos perdidos de uma humanidade confusa e infeliz, o que daria um tom fortemente religioso ao filme de Anderson.

Há um outro ponto a favor do autor, que é o magnífico trabalho de direção dos atores, todos em grandes desempenhos, com especial referência para Julianne Moore, seguramente uma grande atriz, e para Tom Cruise, excelente no papel do garanhão.

Para concluir, uma questão que para muitos pareceu enigmática: o que tem tudo isso a ver com a flor magnólia? Este é o nome de uma rua do San Fernando Valley, onde as histórias todas se entrecrusam e onde a chuva de rãs tem início. Além disso, seria essa uma flor muito comum naquela região. Seria também uma "private joke" com "American Beauty", o outro grande filme que recebeu o título também de uma flor, uma rosa cultivada nos Estados Unidos.

2) BUENA VISTA SOCIAL CLUB é uma prova do que um diretor de grande talento – no caso Wim Wenders – pode fazer dentro das limitações que o gênero documentário determina. O filme registra o trajeto do musico americano Ry Cooder ao reagrupar velhos músicos populares cubanos para a feitura do disco que tem o título do filme, e posteriormente levá-los para uma apresentação no Carnegie Hall, em Nova York.

Com grande respeito, vemos esses músicos saindo do ostracismo – o cantor estava ganhando a vida como engraxate, o extraordinário pianista não tocava há 10 anos – e retomando seu ofício, seu brilho, seu público.

É facil fazer uma leitura política simplista de BUENA VISTA SOCIAL CLUB e dizer que Wim Wenders mostra como os valores reais da música cubana são resgatados pelo capitalismo americano, na produção de um disco e que todo o filme serve para desmoralizar Fidel e os feitos da revolução, ao mostrar uma Havana favelizada frente aos explendores de Nova York.

Mas acho que o escopo de Wim Wender não é esse. Ele faz uma meditação mais ampla sobre a injustiça social que leva à revolução e seu subsequente fracasso, assim como sobre a condição do artista e sua relação com o meio e o tempo em que vive. Wenders mostra como o artista resiste às grandes marés que o mundo político provoca.

Há um olhar melancólico sobre as grandes mudanças pretendidas por uma revolução. Depois de anos de ensino e propaganda de materialismo ateu, mantem-se intata a religiosidade, as crenças populares... Por outro lado, ao mostrar a gritante discrepância entre Nova York e Havana, muito mais que mera propaganda anti-castrista, Wenders registra o abismo entre o primeiro e o terceiro mundo, a persistência da imenso fosso entre os que têem e os que não têem, a injustiça social implícita nisso, a necessidade de manter acesa a indignação e a luta por um mundo melhor.

Duas coisas mais. O maremoto da revolução cubana quase destruiu aqueles músicos que vemos em BUENA VISTA SOCIAL CLUB. Não podemos ignorar outro perigo que ameaça a música popular de uma nação: o lixo cultural exportado pelo primeiro mundo e que sufoca a produção local dos países da periferia do capitalismo.

Outro ítem importante - nesses tempos de globalização, onde um homem de 55 anos é descartado de seu emprego como velho e superado, é reconfortante ver ali velhos cantores e músicos no pleno exercicio de suas capacidades, aprimoradas pela experiência vivida.

3)Butô –

As luzes se apagam e lentamente se iluminam, mostrando estranhos seres de cabeça raspada, totalmente pintados de branco, vestindo inusitadas roupas que lembram vestes talares. Ao som de uma música que é mais uma sequência de rítmos sóbrios, essas figuras surpreendentes executam desconhecidos movimentos que não consiguimos identificar ou atribuir a qualquer repertório já visto ou conhecido. Eles se movem também num ritmo inaudito, tão lento que quase parecem não se mexer. Mais ainda, assumem posições corporais que parecem provar a inexistência de um esqueleto ósseo, tal é a flexibilidade e fluidez das sequências. O efeito geral é de grande beleza.

O expectador, entre aterrorizado e fascinado, sente como se estivesse presenciando um antiquíssimo e secreto cerimonial de sacerdotes egípicios preparando a múmia de algum faraó, ou a uma cerimônia desconhecida de extra-terrestres, prestando tributo a seus líderes, a alguma divindade num ritual misterioso.

Em qualquer dos casos, o expectador sente como se estivesse indevidamente presenciando um espetáculo secreto e que será severamente punido caso seja flagrado em sua observação. Assim, é com alívio que bate palmas enquanto as luzes voltam a acender.

Trata-se do espetáculo "Hiyomeki – Em meio a uma gentil e agitada vibração", magnífica realização do grupo Sankai Jukue, um dos mais célebre de Butô, que se apresentou pela terceira vez em São Paulo há poucos dias. Segundo a Oxford International Encyclopaedia of Dance, o Buto é uma dança contemporânea japonesa, criada nos anos 50, que funde formas tradicioanais daquele país - como a dança folclórica , o no e o kabuki - com contribuições ocidentais atuais, tais como o ballet, a dança moderna e pós-moderna e as formas dançantes de arte performática.

O espetáculo constava de quatro danças. É verdade que já na terceira, o impacto visual e afetivo tinha se diluido. Talvez para um espectador ocidental ele foi longo demais. Mas como entender o misto de terror e fascínio que ele consegue despertar - pelo menos neste que vos escreve? Seria por acordar antigos registros de quando criança víamos os adultos se movendo, fazendo coisas que desconhecíamos, ignorávamos? Seriam evocações da cena primária, a descoberta da vida sexual dos pais, esse mistério doloroso e infindável da vida dos adultos com o qual as crianças tem de conviver?

B) O PSICANALISTA LÊ (um tanto apressado) O JORNAL

1) CASO ELIAN Quatro grandes escritores latino-americanos escreveram pequenas peças frente ao calvário do menino Elian. Foram Gabriel Garcia Marques, Carlos Fuentes , Cabrera Infante e Mario Vargas Llosa. Dos quatro, apenas Garcia Marques defende Fidel, endossando a versão oficial de Cuba sobre os fatos.

A verdade é que o BUENA VISTA SOCIAL CLUB e o Caso Elian expõem de forma constrangedora o esboroar do castrismo em Cuba e isso é uma coisa muito dolorosa para muitos de nós que temos uma visão mais de esquerda. Acho que a posição de Garcia Marques mostra bem esta incapacidade, que muitos apresentam, de fazer o luto pelo sonho da revolução socialista como solução para os problemas da injustiça social. É preciso reconhecer os desmandos que a aplicação na realidade deste sonho produziu – sociedades totalitárias nunca vistas antes.

Penso que muitos não conseguem fazer esse reconhecimento por confundí-lo com um ter de abdicar de uma visão crítica das injustiças sociais. A meu ver são coisas diferentes e somente após o luto pelo sonho da revolução a esquerda poderá retomar um projeto mais realístico dentro das complexidades do mundo atual.

Uma das grandes contribuições de Lacan é sua versão estrutural do complexo de Édipo, onde fica bem ressaltada a enorme importância do pai enquanto representante e instaurador da Lei (nome-do –Pai). O caso Elian coloca esse problema de forma muito complexa.

Se tirarmos todo o desdobramento político desencadeado pelo fato, o que vemos é o ato de uma mãe que age como se o filho fosse um objeto de sua propriedade ou uma extensão narcísica sua, o que a faz levar esse filho para uma situação onde estará privado do pai, que – evidentemente – está excluído de todo esse processo.

Psicanalíticamente, seria correta a devolução da criança ao pai, ao invés de deixá-lo com os parentes maternos, como estes queriam, alegando que assim estariam cumprindo com o desejo da mãe de dar uma vida melhor para o filho, longe do totalitarismo castrista? O que seria melhor para a criança, viver numa "democracia" ou numa "ditadura" ?

Acho que aqui se superpõem dois níveis da realidade. Para a criança, é mais importante viver com o pai, com sua família, mesmo que seja numa ditadura totalitária, do que estar numa democracia mas adotado por outros que não a família. Isso fica patente com os tocantes depoimentos das crianças que quando Castro tomou o poder foram mandadas pelos próprios pais para os Estados Unidos, onde teriam uma vida "melhor", "livre", longe da ditadura, dentro do que foi chamado "Projeto Peter Pan".

No caso de Elian, ele estaria com parentes maternos, não seria adotado por estranhos, como as crianças do Projeto Peter Pan. Mas Elian estaria simbólicamente com a mãe, representada por seus parentes e, consequentemente, privado do pai. Assim, parece correto, psicanaliticamente falando, sua devolução ao pai. Como não conhecemos as pessoas envolvidas, estamos falando teóricamente, pois é claro que a paternidade biológica não implica necessariamente no adequado exercício da função paterna, o mesmo acontecendo com a maternidade biológica e a função materna.

Ao aplicar a lei paterna, a castração simbólica que rompe a relação simbiótica narcísica com a mãe e que instaura a subjetividade desejante no filho, o pai exerce sua função mais importante. Mas ele é também o mediador entre os filhos e os valores da sociedade em que vive, ele é o representante das leis que regem determinada sociedade. Nesta posição, ele poderá assumir diferente papéis, quer se identifique com as leis advindas da órdem política vigente ou não. No caso Elian, por exemplo, seu pai pode ou não concordar com as leis castristas.

Seria muito curioso – mas aí não mais do ponto de vista psicanalítico e sim político - se ele, o pai, tivesse autonomia para efetivamente escolher, agora que está nos Estados Unidos, voltar ou não para Cuba. Carlos Fuentes sugere que ele vá morar na Espanha com o filho. Cabrera Infante diz que os "santeros", seguidores do sincretismo religiosos afro-ocidental (os equivalentes a nossos macumbeiros) profetizam que se Elian não voltar para Cuba, isso seria um sinal de que Fidel finalmente cairia. Como os "santeros" são extraordinariamente populares, Fidel estaria muito preocupado com o retorno para garantir-se mais algum tempo no poder.

2) CORRUPÇÃO – As notícias sobre corrupção nos mais variados estratos de nossa organização política têm atingido níveis que beiram ao insuportável. Ninguém aguenta mais saber todos os detalhes das mais variadas falcatruas e perceber a quase total impunidade que cerca os infratores. Teme-se que isso estimule a nostalgia do rigor ditatorial, onde supostamente não ocorriam tais desmandos. É claro que isso é uma ingenuidade. Tanto mais ditatorial e censurado, mais corrupto é o poder.

O que vivemos agora é um momento histórico difícil, que lembra metaforicamente o momento em que, numa análise, caem as repressões e o material reprimido vem à tona num momento onde o ego ainda não organizou formas de defesa mais maduras ou organizadas, provocando uma certa desorganização inevitável dentro da mudança estrutural em curso. Impulsos agressivos e eróticos aparecem e provocam, às vezes, atuações complicadas.

Uma forma de tornar mais tolerável o intolerável é entender este momento como um período de transição num processo de crescimento democrático e de cidadania. Se antes a corrupção grassava secreta e impune, hoje ele não é mais secreta, expõe-se aos olhos de todos e se seus executores não são ainda punidos com o rigor da lei, não deixa de ser verdade que – ao serem expostos – sofrem um certo ainda que doce demais para meu gosto ostracismo político e social.

 

3) FESTAS DOS 500 ANOS – Poderia ter havido algo mais sintomático e revelador de nossa realidade político-social do que esta festa que supostamente deveria comemorar os quinhentos anos de nossa Descoberta? A desorganização, a falta de planejamento, a exclusão dos índios, o isolamento político do poder, etc, etc.

Por outro lado, a manifestação de uma sociedade viva e contraditória, construindo sua identidade aos trancos e barrancos, como se pode ver na emocionante e belíssima exposição no Parque do Ibirapuera.

Um momento certo para agradecer a Gilberto Freyre, este que primeiro conseguiu esboçar o nosso rosto.

C) CORRESPONDÊNCIA

Dr. Sérgio Telles

Fico imaginando como analisaria este filme na sua miscelânea da POL. São interessantes suas abordagens. Certo que não sei nada de psicologia, mas, coisas de viver qualquer um sabe um pouco.

Fiquei curiosa para conhecer sua opinião sobre o filme, porque a cotação máxima do JT foi o que me levou a assisti-lo e, para mim, figurou-se uma colcha de retalhos feitos de irritação auditiva e visual, clichês desfigurados sem nenhuma arte, quem sabe, sádicos - pais arrependidos, filhos imbecis, homossexuais entediados, mãerimbunda abandonada e, se não bastasse, uma inexplicável chuva de sapos. E fiquei cismando - o que viram neste filme, que eu não vi?

Saudações

Sua leitora leiga

Nilze

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Polbr

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Giovanni Torello

Data da última modificação:09/05/2000