O telefone celular

Rubem Alves

Em Minas, antigamente, eram comum nas portas, à frente das casas, um buraquinho por onde passava um barbante. O barbante estava amarrado ao trinco. Bastava puxar o barbante do lado de fora para que a porta se abrisse. Assim, qualquer pessoa, a qualquer hora, podia entrar, sem precisar bater, e se não houvesse ninguém na casa, ir até a cozinha e tomar um cafezinho quente no fogão de lenha. Não conheço caso de que esse gesto de cortesia e confiança, o barbante pendente, tivesse sido desrespeitado. Imaginemos entretanto, em puro devaneio literário que, num dia qualquer, voltando para casa, o morador a encontrasse ocupada por todo tipo de pessoas (haviam entrado puxando o barbante), umas amigas, sempre bem-vindas, mas a maioria desconhecidas, que enchiam as salas, os quartos, os corredores, os banheiros, a cozinha... Algumas, simpáticas, sorridentes, outras meio vadias, tinham entrado porque era fácil puxar o barbante...Pois foi precisamente essa a imagem que me veio ao ler o artigo justamente irado do Frei Beto, a propósito de uma invasão sofrida. Antigamente, quando era preciso escrever no papel, sobrescritar envelope, ir ao correio e colar selo, a trabalheira era muito grande. Por isso as cartas eram sempre sobre coisas importantes. Hoje quem não tem o que fazer faz uso da facilidade para ficar mandando e-mails. O frei Beto encontrou 137 e-mails à sua espera. Aí ele ficou muito bravo e fez uso da tecla delete para dar expressão ao seu sadismo...

Pois eu vou me juntar ao frei Beto para falar mal do telefone celular. Faz tempo, comprei um, daqueles pesadões, hoje elefantes se comparados aos mais modernos, pequenos beija-flores que se seguram delicadamente com o indicador e o polegar. Me sinto humilhado, pela comparação. Pensei em comprar um beija-flor, para exibir minha modernidade. Mas não adianta. O meu, nesse momento em que escrevo, não sei onde está. Também não adianta. Está sempre desligado. Acho que não quero ser encontrado.

Psicanalista, tenho o costume de ficar interpretando os objetos. O telefone sendo um deles. Descobri, num museu da cidade de Lavras, uma "folhinha" colorida da loja da minha avó, Sophia Alves do Espírito Santo, próspera e progressista. Data: 1917. Está lá, o número do telefone: 23. Pensei: para que? Quantos telefones devia haver em Boa Esperança, naquele ano? Dois? Três? E mesmo se houvesse, as pessoas não faziam compras por telefone. O tempo era muito comprido, e as pessoas queriam mesmo era ir ao lugar, para matar o tempo que não passava e prosear. Negócios com a capital? Impossível. Não se faziam negócios por telefone. Mesmo porque não se conseguia ouvir o que se dizia. Minha avó tinha telefone não por razões práticas mas, como sugeriram Veblen e Freud, por razões simbólicas. Para esnobar riqueza. Quem tinha telefone era rico.

Telefonema era coisa grave. As casas não tinham telefone. Havia um "posto telefônico". A chamada chegava no posto, que enviava um mensageiro à casa da pessoa chamada. Chegava o mensageiro, todo mundo estremecia. Tinha de ser coisa muito grave. Quem será que morreu? - se perguntava. Acho que é essa gravidade ancestral de uma chamada telefônica que explica o fato de que quando o telefone toca todo mundo corre. Interrompe-se tudo. Não conheço ninguém que, tocando o telefone, deixe o telefone tocar. Preciso resolver um assunto num escritório. Paro minhas coisas para ir lá. No balcão, ou numa mesa, converso com o funcionário. No meio da conversa, toca o telefone. Quem telefonou não foi lá, como eu, ficou em casa, não quis perder tempo. Pois quem estava me atendendo, sistematicamente, interrompe nossa conversa, me deixa esperando, e fica atendendo aquele que não foi. Por que? Porque se pressupõe que o telefonema é sempre mais importante. Telefonema é coisa grave.

Nos aeroportos fico contemplando o espetáculo, todo mundo falando no celular. Penso: Quantas coisas importantes estão acontecendo, inadiáveis! Ah! Como se sentem felizes as pessoas quando seu telefone celular toca. O toque de um celular anuncia para todos o quão importante ela é. Eu, com frequência, faço palestras. E já é norma esperada que, no meio da minha fala, um telefone celular toque. A princípio eu ficava indignado mas não dizia nada. Mudei de idéia quando, certa vez, o telefone de um cavalheiro que se assentava na primeira fila tocou e ele, ao invés de desligar o telefone, conversou tranquilamente com a pessoa do outro lado da linha (??). E ali fiquei eu perplexo, com cara de bobo, falando, enquanto o tal cavalheiro, do centro de sua bolha narcísica, anunciava para as 600 pessoas o quão importante ele era. A pessoa que faz isso tem uma visão grandiosa e poderosa de si mesma. Ela se imagina encontrar no centro de coisas gravíssimas que exigem sua ação imediata. Caso contrário, se ela não atender o telefone e não agir, é possível que o mundo caia em pedaços. De alguma forma, é como se fôssemos um dos super-heróis, Batman ou Super-homem, de cuja ação imediata depende a normalidade do mundo. Agora quando o celular toca eu faço gozação. Faço interpretação psicanalítica. O telefone celular que toca é um falus que se exibe.

Quando eu era menino a diversão da gente era ir à matinée aos domingos, para o faroeste. O mocinho, com aqueles revolvões pendurados na cintura! Que inveja! Bem que eu gostaria de ter cinturão de mocinho com revólver no coldre. Assim, quando eu fosse andando pela rua todo mundo me olharia com medo e respeito. É essa fantasia infantil que me vem à cabeça quando vejo os homens andando por aí, com seus telefones celulares pendurados no coldre que está preso ao cinto. É menino realizando o sonho. Nos restaurantes cada um põe a sua arma sobre a mesa. É preciso estar atento. É preciso estar pronto. Jamais deixar o celular no carro! A qualquer momento pode surgir uma emergência. É preciso agir com rapidez.

Acho um telefone celular uma coisa útil. É possível que, no futuro, eu compre um dos pequenos ( pequeno mas potente!), que eu possa carregar na pochete. No coldre, jamais! Morreria de vergonha! Mas fico assombrado com a forma como as pessoas abrem mão da sua privacidade. Talvez porque a sua privacidade seja vazia, não tenha nada lá dentro. Sendo vazia, elas se sentem diluir no nada. Penso, assim, que o telefone celular é um artifício que se usa para lidar com a solidão. Que horror, quando o celular não toca! Ninguém está se lembrando de mim! Ninguém precisa de mim! Vou sugerir aos fabricantes de celulares que os aparelhos tenham um marcador de chamadas. Assim, ao final do mês, as pessoas poderão avaliar o quão importantes elas são. "Ah! Como sou importante! Fui chamado 280 vezes!" Assim ficarão felizes. Os celulares podem ser, assim, aparelhos para se medir, quantitativamente o grau de importância de alguém. O que importa não é a mensagem, aquilo que é comunicado. É o meio - o fato de o celular estar sendo usado. Como dizia Marshal MacLuhan: " O meio é a mensagem". Essa é a razão por que as pessoas aumentam o seu prazer falando no celular de forma a serem vistas e ouvidas. É preciso que todos saibam! Nos aeroportos elas falam andando (para aumentar o público) e falando alto para que os que não estão vendo ouçam. É divertido.

Tenho saudades do tempo, lá em Minas, do barbante pelo buraco na porta. Os visitantes eram sempre amigos e poucos. Hoje é perigoso deixar o barbante de fora. A gente termina por perder a casa. Tenho medo do e-mail. Tenho medo do celular.

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Giovanni Torello

Data da última modificação:08/11/99